Procurar no site


Contacto

Henrique Braz Rossi
São Bernardo do Campo - SP - Brasil

E-mail: henrique@octaki.com.br

Largo lago

21-12-2009 17:14

Creio que nesses últimos meses, ou anos, as chuvas estão se intensificando e sacrificando vidas e lugares. Já é rotina dos noticiários alagamentos, inundações, casas caindo pelos morros e vidas se perdendo em meio a água e lama.

Outro dia vi que um bairro inteiro estava alagado por vários dias, por estar perto do Rio Tietê. Lamentável para as famílias, porém isso me lembrou um fato que passei em um bairro da periferia de São Paulo há alguns anos.

Estava participando de uma ação social como escoteiro em uma favela. Meus amigos escoteiros e minha mãe, que era chefe, estavam nessa empreitada. Saímos em uma perua branca num sábado bem cedo. Iríamos ajudar uma comunidade com um bingo, bazar de roupas usadas e almoço comunitário. Lembro-me que andamos por muitos lugares, vilas e becos estreitos até parar no meio de uma avenida movimentada. Era um lugar bem interessante, onde a maioria das casas eram iguais: tijolos a vista, janelas pequenas, porta de ferro e jovens e crianças sentadas na frente nos observando. O clima sombrio era quebrado com os botecos mesas de sinuca e som alto.

Nosso motorista deu o alerta para pegar o que puder dos pacotes que lotavam a perua e começar a andar. Eis que entrou numa fenda entre duas casas, tipo viela sem fim, que acabava em um largo espaço no fundo do bairro. Era o centro da comunidade. Agora me sentia mais confortável com os sorrisos de boas vindas. Todos viam nos ajudar a carregar nossos pacotes, já me sentia em casa.

Avistei uma escadaria da igreja que não lembro o nome, mas era ali o ponto de encontro e o local do evento do dia. Mesas e cadeiras espalhadas, araras com roupas ao lado e muitas mulheres de tocas brancas – eram as cozinheiras hiper animadas. Gente muito alegre e simples que lotavam o espaço. As ruas eram de barro batido, fios diversos se encontravam no céu do largo, placas nas portas anunciavam vendas de gelinho e corte e costura – ali todos faziam alguma coisa.

Após algumas horas do bingo, perto da hora do almoço, uma leve chuva começou a cair. Todos corriam para dentro da igreja, mesmo sem participar de nada, era o maior lugar do local. A chuva se fez mais forte e não parava mais. A viela por onde chegamos já se tornara um rio começava a se juntar com outros para encher aquele largo. Em poucos minutos o que era largo virou lago. Até então não me preocupava muito pois o nosso local era bem alto e aparentemente seguro.

Risos despreocupados me deixavam calmo. Percebi que para aquelas pessoas isso já era rotina. Mesmo assim fiquei observando os fatos. Até que os ventos e trovões deixaram todos ali mudos. Eu mesmo nem respirava. Mudo estava e mudo ficamos!

O vento já era maior que a chuva e destelhou parte da frente da igreja, e pela correria o fundo também. A água não só estava no largo, mas entrava pela igreja toda. Molhando os brindes e parte das roupas do brechó. E foi assim por todo o dia. Amontoávamos nos cantos secos até alguém do nada gritar: Alguém quer café? Nossa. Incrivelmente as pessoas esqueceram da chuva e foram sorrindo tomar o néctar brasileiro. Que poder tem um café para as pessoas, eu mesmo entendi depois que aquele gole quentinho desceu e esquentou minha garganta. Parecia que depois daquele momento tudo iria se resolver. Não resolveu, a chuva não parava, mas as pessoas mudaram o clima e retornaram para os afazeres. Bingo sendo cantado, roupas sendo arrumadas em outro canto e café e bolos de fubá na mesa.

Olhei para meus amigos e mesmo calados entendemos que estávamos em um mundo de pessoas batalhadoras que sorriem nas dificuldades. Pareciam escoteiros, mas sem lenços e uniformes. Até que minha mãe junto com uma senhora da comunidade deram a notícia que iríamos pernoitar por ali, pois não tínhamos condições de voltar. Para todos nós, era mais uma aventura e certamente não ficamos preocupados. Ate baixar aquele água toda, tudo era festa. Fiz muitos amigos e aprendi que em alguns momentos um bom café é um ótimo remédio para reunir pessoas.

 

Esse texto faz parte do Livro: Amizades antigas, lembranças recentes.
Autor: Henrique Braz B Rossi

 

Comentários

Data: 22-12-2009

De: karina francis urban

Assunto: bela cena

Dá até pra imaginar o café, as vielas, a chuva, a igreja e, é claro, a mesa de sinuca!

Data: 22-12-2009

De: cida camargo

Assunto: texto

Muito interessante o seu texto e mais interessante ainda o reconhecimento de uma lei escoteira, e vivê-la ao vivo e a cores.